8 de outubro de 2012

Obrigado pela música

Desde sempre tivemos programas televisivos com números musicais. Praticamente todas as grandes séries tiveram uma música inesquecível: o genérico. Mas o fenómeno das séries puramente musicais é mais recente. Temos os casos incontornáveis da Família Partridge e de "Fame", mas são quase únicos. As outras quanto muito tinham episódios musicais para encher enquanto os argumentistas pensavam em algo novo. É algo tão comum como os episódios apenas com flashbacks. E a Disney depois de lançar estrelas do cinema e da televisão, também lançava estrelas musicais quase que por distracção. Basta ver o caso de Hillary Duff que num dia era estrela televisiva, no outro vendia milhões de discos. E como ela Lindsay Lohan e muitas outras. Mas entre filmes para tv (destaque óbvio de "High School Musical") e séries vai uma longa distância. Esse passo foi dado em "Hannah Montana", um produto óbvio da máquina de marketing Disney, para as crianças infernizarem os pais desde tenra idade, pedinchando toda a panóplia de adereços oficiais da estrela com transtorno de dupla personalidade. Funcionou, mas foram batidos. É que a meio do reinado de Hannah Montana surgiu outra série musical. Era para um público mais velho - aquele que além de pedir tudo o que vê também se sabe informar sobre o que há - mas não tinha o objectivo de vender. Mais detalhes já em seguida.

Quando Ian Brennan escreveu o seu guião em 2005, a ideia era fazer um filme só que ninguém o queria produzir. Aparentemente não era tempo para musicais. Quando Ryan Murphy, antigo membro de coro, recebeu uma cópia do colega de ginásio Michael Novick (amigo de Brennan), pensou em fazer uma série com esse tema. Os três juntos deram os retoques necessários e enviaram-no para a FOX que imediatamente aceitou. Este canal é famoso por deixar cair muitas séries pelo que aquele miúdos cantores tinham de ser brilhantes e a história tinha de colar milhões ao ecrã. A parte de miúdos brilhantes não correu mal de todo. Foram à Broadway contratar uma dúzia dos jovens mais promissores, passaram-nos pelo processo de rejuvenescimento e pronto. Tinham estrelas desconhecidas de vinte e poucos anos que sabiam cantar e dançar, e prontas a encantar como alunos de secundário. Quanto à história ia ser uma novela pura, com intriga, drama, angústia, juras de amor eterno, gravidez adolescente, inimigos temíveis, agentes duplos, os bullies e os cromos, os atletas e as cheerleaders, uns alunos génios e outros mais baldas, máxima diversidade racial e de orientação sexual... em suma, o secundário como todos o recordamos. Esta série ia ter literalmente de tudo.

Além do elenco permanente foram convidadas algumas estrelas musicais de hoje e de sempre como Olivia Newton-John, Josh Groban, Ricky Martin, Britney Spears, Gloria Estefan e Charice e apareceram actores que sabem cantar como Kristin Chenoweth, Gwyneth Paltrow, e Neal Patrick Harris. Como se isso não bastasse as estrelas de cinema Whoopi Goldberg e Kate Hudson não passaram despercebidas, ao contrário das inúmeras lendas da Broadway que só tiveram reconhecimento entre o público dos EUA. Estando tudo isto dito só falta dizer o nome do programa, mas penso que dispensa apresentações. A série que todos viam e onde quase todos queriam estar (Bryan Adams, Coldplay e Kings of Leon proibiram a utilização dos seus temas) é "Glee".

A melhor palavra para descrever a série é fenómeno. Fenómeno porque, não sendo mais do que uma novela, quase que inventou um género. Fenómeno porque milhões de gleeks pelo mundo fora colavam o rosto ao ecrã, de lábios no microfone, prontos a acompanhar os seus heróis. Fenómeno porque conseguiu, como o seu popular tema diz, que nunca parassem de acreditar. Podem ser um atleta ou um rufia, um génio ou burros como uma porta, podem ser fisica/mentalmente deficientes, podem ser a pessoa mais popular da escola ou a mais irritante, podem ser homossexuais, ter excesso de peso, podem não ter jeito para mais nada. Aqui o que importa é apenas a voz que vos sai do coração. Desde que saibam cantar têm um grupo de pessoas prontas para estar do vosso lado e vos aceitar como são. Aliás, para se desmarcarem do resto da escola e aceitarem todos como são. São os mais bonzinhos que se pode ser para serem adorados por todos e serem os modelos dos espectadores. Sim, a intenção é mesmo essa. Apelar a todos os públicos para que, através de uma personagem ou do todo, se revejam na série e a acompanhem.

Não posso falar pelos outros, mas posso descrever o que se passou comigo. Acompanhei a primeira temporada religiosamente, suportando a novela até chegar cada música. Das setenta músicas “cantei” mais de cinquenta e entretanto fui-me deixando enredar na teia. Com a segunda temporada foi mais complicado. Ainda vi o início, mas começaram a ter episódios dedicados a artistas que não apreciava e fui-me despegando pois sem a música não fazia sentido ver aquilo. Até que subitamente começava nova temporada e voltava a acompanhar os New Directions na sua infeliz perseguição do título, deixando de ver semanas depois. E asim foi até no outro dia ter apanhado o penúltimo episódio da terceira temporada na televisão.

Muitos anos passaram, muitas caras mudaram e muitas novidades aconteceram. Não houve propriamente surpresas pois sabemos que o bem vence sempre. O coro está nas finais nacionais como é habitual e agora sim, é decisivo. Esta é a sua última oportunidade de mostrarem ao mundo do que são feitos. Conseguirão vencer como equipa ou perderão como os indivíduos insignificantes que são? Tal como eles aprenderam a lidar com a derrota nas temporadas anteriores, também o espectador vai ter de perceber que este quase derradeiro capítulo não é sobre uma competição. Não é o resultado que importa, mas o que fazem para lá chegar. As músicas não são brilhantes, isso é relativo e não se podia agradar a todos, mas as coreografias e a forma como estão filmadas são. Este é o culminar de uma série que sempre primou pelo visual e pelo sonoro e aqui temos oportunidade de ver actuações de fazer o queixo cair. Enquanto isso, nos bastidores, dão-nos uma lição sobre o que significa ser um vencedor pois são eles que dão ânimo aos Vocal Adrenaline para actuarem como o coro mítico que são. Vencer contra uma equipa fragilizada não dá prestígio. Para vencer ou para perder, tem de ser contra os melhores.
O episódio brinca com a importância relativa que tal competição tem. Mesmo Lindsay Lohan se queixa de estar num espectáculo não televisionado. E subitamente percebemos que a série nos manipulou para darmos valor a uma competição que somente interessa a gleeks. Perder não é o fim do mundo. Vencer é só uma questão de afirmação pessoal, talvez uma possibilidade de avançarem no mundo da música. Nada mais... Só aí percebemos que não interessa a projecção dada pelo prémio. Algures no coro de alguma escola há alguém que precisa de acreditar em si, que precisa de saber que, se der o seu melhor, quem está na plateia saberá. Porque arte é dar ao público, e o prémio maior são os aplausos no fim de uma actuação brilhante. A engrenagem perfeita dos Vocal Adrenaline dominou a competição durante quase uma década. Mesmo assim as outras escolas voltam todos os anos. Não é por serem ambiciosos ou loucos, é porque acreditam. Sempre acreditaram que a Música não é para ser automática, é uma questão de coração, amizade e confiança. Claro que isto não é dito num só episódio. É a mensagem que foi sendo passada ao longo de três anos e aqui é reforçada.

Depois disso é chegada a hora de fechar pontas soltas e dizer adeus. Como o ensino superior nos EUA é estupidamente caro e o ensino superior não é para todos, o fim do secundário tem muito mais significado do que por cá. O último episódio da temporada é muito bom com toda a sua carga dramática, a saudade que fica no ar e o carinho entre eles. Sabemos que nada será igual no ano seguinte, mas por enquanto estão em perfeita unidade. O fracasso de um é o fracasso de todos. O sucesso de um é o sucesso de todos. Quem não conhece a sensação ou não viveu o suficiente ou não tem amigos verdadeiros.
Na quarta temporada (em exibição) enquanto uns partem em novas aventuras musicais, os Novas Direcções terão de começar do zero e mostrar mais uma vez que merecem estar nos nacionais. É a vida adulta que os encontra e os espera para um período bastante mais complicado, onde apenas a música e as memórias de amizades que ficam para sempre, lhes darão força para continuarem a seguir os sonhos que tinham com dezasseis anos. Bem-vindos ao mundo real. Boa sorte.

Sem ter a crua realidade de um "Fame", ou a raiva de um "Footloose", não deixa de ser uma obra que marcou a sua geração, que permitiu a muitos jovens sonharem e que lhes ficará na memória, talvez com mais carinho que os próprios tempos de escola. Percebo que para os adultos seja junk food televisivo, mas comparando com o da nossa época, esta geração vai muito bem servida.

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