15 de setembro de 2018

"A Simple Favor" por Nuno Reis

A Simple Favor
Um blogger escrever sobre um filme sobre uma vlogger não é algo que se leia todos os dias. Por isso instalem-se, ponham-se confortáveis e preparem-se para um texto invulgarmente longo. Este filme tem tantas camadas que tem de ser cortado em várias postas.

Darcey Bell estreou-se na escrita com um emocionante thriller cheio de twists e detalhes que foi descrito como “um Gone Girl com drogas”. Isso é um elogio. Tanto que um ano antes da publicação já os direitos tinham sido comprados. A adaptação foi escrita por Jessica Sharzer que nos deu uma boa parte de "American Horror Story", uma garantia de termos emoções fortes.
O realizador foi Paul Feig que, em termos simples, era uma escolha óbvia. Fei g trabalhou vários anos em televisão, passando por títulos como "Arrested Development", "Nurse Jackie" e "The Office". Em comum? São comédias. Essa característica manteve-se quando passou para o cinema e aí outra característica se evidenciou: trabalhar com mulheres. A estreia foi um excelente "Bridesmaids" com um conjunto de estrelas que também vieram da TV. A esse seguiram-se vários outros como "The Heat", "Spy" e o malogrado "Ghostbusters", todos centrados em personagens femininas. Ele precisa de algo em grande para voltar à mó de cima e este filme suplicava alguém capaz de nos dar um filme interessante sobre mulheres que não fosse só para mulheres. Spoiler: ele conseguiu.
A Simple Favor
Para os papéis protagonistas era preciso uma mulher que extravasasse classe em cada passo. Quem viu Blake Lively em "Gossip Girl" ou "Age of Adaline" sabe que ele encaixa na perfeição nesse papel. Aliás, isso é tudo o que faz em "Café Society". A sua presença ilumina a tela e a intensidade dramática permanece mesmo quando ausente.
A Simple Favor
Quem podia ser a blogger? Por ser uma história de jovens mães, não iriam recorrer a ninguém que já tivesse feito de mãe. Anna Kendrick para muitos ainda é a miúda trapalhona de "Twilight", "Up in the Air", "Scott Pilgrim"… e ainda é uma recém-licenciada que gosta de cantar como em "Pitch Perfect" (1,2). Mas para alguns é a rapariga desajeitada que se apaixona por um assassino em "Mr. Right" e dá a volta a todos. E apesar de nunca a termos visto com filhos, já a vimos entre grávidas. É perfeitamente capaz de levar aos ombros um filme e alternar entre os registos de super-mãe, trapalhona, ou mulher sensual. Ou por vezes ser apenas uma pessoa normal com defeitos e virtudes como todo nós. Kendrick é a derradeira girl next door.
A Simple Favor
Agora que está esclarecido e provado que se reuniu a equipa de sonho, vamos falar do filme.
Tudo começa com Stephanie Smothers. E smother é um verbo muito semelhante a sufocar que se costuma usar em referência às mães-galinha. Sendo desempregada, Steph tem tempo para estar sempre com o filho e fazer tudo pela associação de pais, ofuscando os demais. E ainda lhe sobra tempo para fazer um vlog que ajuda outras mães. Não tem muitos seguidores, mas lá chegará. Devido a essas diferenças, os outros pais não se dão muito com ela. Até que surge Emily Nelson. Esta mãe não tem papas na língua e não se relaciona com os demais pais. Como os filhos são amigos, acaba por conversar com Steph de volta de uns martinis. Com o passar do tempo e seguras por uma rede de segredos e mentiras, Steph considera Emily a sua melhor amiga. Até que um dia, como já era habitual, Emily lhe pedir um pequeno favor. Que traga o filho da escola, pois vai ficar retida por uma emergência no trabalho. Só que Emily não volta nessa noite nem no dia seguinte. Stephanie avisa o marido de Emily e o emprego e ninguém mais acha estranho. Ela tem dessas coisas. Stephanie acha que algo está errado e vai partilhando o que se passa com os seguidores no vlog. E assim começam duas horas de uma aventura que nenhuma mãe de uma pacata vila esperava viver.
A Simple Favor
Como referido acima, o filme tem várias camadas e surpresas. No início é o que se esperava de um drama sobre uma vlogger. Tem os momentos familiares, tem alguma conversa de circunstância… está a colocar as peças e a apresentar as personagens. Só que aos poucos estas duas mulheres vão revelando segredos um pouco mais delicados. Subitamente o filme mudou completamente de tom. Estamos num thriller com toques de romance escrito para o público feminino. Pode parecer receita para um telefilme, mas esta mistura inesperada resulta. Muito apoiado nas soberbas actrizes e com um elenco secundário sólido (as crianças nem por isso), "A Simple Favor" rapidamente se torna num dos melhores thrillers do ano. A poderosa banda sonora maioritariamente em francês já nos tinha alertado que ia ser um filme com estilo, mas excedeu as expectativas. Tem algumas partes inacreditáveis, mas soube parar antes de entrar em exageros. E como é comédia, qualquer espectador ligou a tolerância para exageros.
A Simple Favor
Está encontrada a receita para bom entretenimento. Uma história que combine escândalo, comédia, drama e, romance, tudo envolto num bom mistério. Com um elenco perfeito para ter honras de ser exibido em cinema, claro.
"A Simple Favor" é muito recomendado e pela minha parte, vai ser para rever assim que estreie.


A Simple FavorTítulo Original: "A Simple Favor" (EUA, 2018)
Realização: Paul Feig
Argumento: Jessica Sharzer (baseada no livro de Darcey Bell)
Intérpretes: Anna Kendrick, Blake Lively, Henry Golding
Música: Theodore Shapiro
Fotografia: John Schwartzman
Género: Comédia, Thriller
Duração: 117 min.
Sítio Oficial: https://asimplefavor.movie

13 de setembro de 2018

"Book Club" por Nuno Reis

As lendas estão de volta.

Book Club
O cinema tem muitas estrelas que vão caindo no esquecimento. Seja porque se reformam ou porque não arranjam papéis, é normal vermos cada vez menos aqueles actores com quem crescemos. Para actrizes ainda é pior pois como ouvimos regularmente, há menos papéis femininos e os que há são para as jovens e bonitas. Ouvir dizer que um filme vai ter como estrelas de igual estatuto as veteranas Diane Keaton (não tem feito nada de jeito), Jane Fonda (está reformada), Candice Bergen e Mary Steenburgen (por vezes aparecem em televisão), é motivo para ficar curioso. Nos papéis masculinos Andy Garcia, Craig T. Nelson, Don Johnson, Richard Dreyfuss e o sempre risonho Wallace Shawn também não são para ignorar. Só que o filme é delas. Também entra Alicia Silverstone, mas é tão pouco tempo de ecrã que, para ser sincero, a confundi com Maggie Lawson até ver o nome no genérico.
Book Club
Uma dica rápida para quem faz cinema: três oscarizadas, uma delas é também dos nomes mais repetidos nos Golden Globes, e a rainha dos Emmys, são capazes de actuar em qualquer idade e ainda conseguem atrair as multidões. Em especial se o público-alvo forem as mulheres dessa idade.
Book Club
A história é sobre quatro amigas que cresceram juntas e fazem um clube de leitura com reuniões mensais há várias décadas. Quando uma delas traz “As 50 Sombras de Grey” para discussão, os ânimos vão aquecer. Vai despertar uma sexualidade latente que vai ter reflexos na vida de todas elas. A viúva Diane vai-se envolver com um homem enquanto as filhas a acham acabada e querem que ela mude de estado para ficar mais perto delas. Vivian que adora sexo, mas sempre se negou ao amor, vai reencontrar a sua única paixão. Carol vai continuar a tentar apimentar o seu casamento contrariando o marido que se vai acomodando e distanciando. Sharon está simplesmente irritada por o seu ex-marido estar com uma mulher mais nova e vai recorrer à internet para procurar homens. O sexo e o amor não têm limite de idade.
Book Club
Então afinal sobre que é o filme? Não é sobre livros. É sobre viver até morrer. É sobre não aceitar o que a sociedade espera de nós. É sobre ter amizades que duram para sempre. É sobre relações que começam, se mantêm ou acabam com o passar dos anos. Em suma, pega nos temas dum filme para adolescentes, só que se foca em pessoas que deixaram a adolescência há meio século. E ao mesmo tempo é sobre mulheres. O que é mais surpreendente é que este primeiro projecto de Bill Holderman (tão simples que não compromete) não é a sua primeira exploração da terceira idade. Foi o produtor de “Old Man and the Gun”, o derradeiro filme de Robert Redford. Enquanto uns estúdios apostam na juventude com épicos de acção e romances, ou na exportação para territórios inexplorados, há quem trabalhe com a prata da casa. Uma decisão ajuizada e sem riscos que deu um filme fora do comum.
Book Club
O mais difícil seria equilibrar estes egos, mas diria que a oportunidade de fazer algo deste género tornou toda a gente muito receptiva a partilhar ecrã. Em vez de haver uma história central e personagens secundárias que vão dando uma mãozinha, cada personagem vive uma história diferente e ajudam-se mutuamente. As mini-histórias vão-se complementando, dando origem a um produto completo e diferenciador ainda que previsível. “Book Club” não é a comédia do ano, mas é o filme repetido mais original do ano.


Book ClubTítulo Original: "Book Club" (EUA, 2018)
Realização: Bill Holderman
Argumento: Bill Holderman, Erin Simms
Intérpretes: Diane Keaton, Jane Fonda, Candie Bergen, Mary Steenburgen, Andy Garcia, Craig T. Nelson, Don Johnson, Richard Dreyfuss
Música: Peter Nashel
Fotografia: Andrew Dunn
Género: Comédia, Drama, Romance
Duração: 104 min.
Sítio Oficial: https://www.paramount.com/movies/book-club

20 de agosto de 2018

"Épouse-Moi Mon Pote" por Nuno Reis

Épouse-Moi Mon Pote
O cinema francês tem vindo a aumentar o número de filmes enviados para cá. No entanto, em termos de género, continua a apostar fortemente nas comédias. Este ano não foi excepção e começou logo com "Épouse-Moi Mon Pote".
Épouse-Moi Mon Pote
O filme tem dois temas da moda. O primeiro é a integração de imigrantes de países árabes. O marroquino Yassine chega a França para estudar arquitectura. Apaixona-se pela colega Claire e tudo parece correr bem. Uma distracção coloca tudo isso em risco e ele torna-se um ilegal a viver na clandestinidade. Segundo tema, casamentos homossexuais. Para se legalizar, Yassine tema ideia louca: casar com o melhor amigo Fred. Quem não acha piada a isso é Lisa que espera um pedido de noivado de Fred e não o quer ver casado com ninguém mais, nem a fingir. Tudo piora quando Yassine precisa de uma esposa e Lisa é a única mulher por perto. E claro que Claire tinha de voltar a aparecer na vida dele nesse preciso momento.
Épouse-Moi Mon Pote
Entre tantas comédias românticas, o realizador estreante Tarek Boudali sabia que se tinha de distinguir. "Épouse-Moi Mon Pote" é um filme descontraído desde o início. Não apostou em estrelas do cinema. Ele próprio é o protagonista. O seu co-protagonista é Philippe Lacheau também um actor tornado realizador a dar os primeiros passos, que utilizou Boudali, Charlotte Gabris e vários outros em alguns filmes. "Babysitting" será o mais conhecido e estreou entre nós em 2015. São um grupo de amigos a fazerem um filme por gosto. A eles juntou-se Andy Raconte, uma celebridade de reality shows e youtuber. Por incrível que pareça este quarteto (e outros que se juntam a eles) conseguem manter o filme profissional e divertido. A forma estouvada como lidam com os estereótipos e a quebra deles como se fossem um tema recorrente, é uma necessária lufada de ar fresco. As caricaturas podem ser exageradas, mas funcionam. A política dos paninhos quentes não funciona. Sim, os árabes estão na Europa. Sim, fazem parte da sociedade. Sim, há homossexuais que se casam. Sim, há casamentos falsos tanto entre pessoas do mesmo sexo como de sexos diferentes. E este é o século XXI. Banalizou-se tudo e há críticas mal fundamentadas a tudo, porque não brincar com o que deve ser falado?
Épouse-Moi Mon Pote
É um filme feito com poucos recursos, mas profissional. O argumento recorre a gags habituais, mas dá uma nova visão ao conjunto. Os actores cumprem o que se esperava de comediantes profissionais, ficando a externa Andy com o papel mais sério. Foi um risco, que funcionou e talvez tenha melhorado os números de bilheteira no território francês. Os cenários foram escolhidos para serem típicos sem serem amadores. As músicas revelam uma influência anglófona que os franceses não gostam de admitir. Essa originalidade fica bem e acaba por ser o elemento mais estranho do combinado. Não é um filme memorável no seu todo, mas passa a sua mensagem. Será daqueles títulos a rever várias vezes na televisão. Isso se algum canal se distrair e o aceitar na sua programação.


Épouse-Moi Mon PoteTítulo Original: "Épouse-Moi Mon Pote" (França, 2017)
Realização: Tarek Boudali
Argumento: Tarek Boudali, Nadia Lakhdar, Pierre Dudan, Khaled Amara
Intérpretes: Tarek Boudali, Philippe Lacheau, Charlotte Gabris, Andy Raconte, David Marsais, Julien Arruti, Baya Belal, Philippe Duquesne
Música: Maxime Desprez, Michaël Tordjman
Fotografia: Antoine Marteau
Género: Comédia, Romance
Duração: 92 min.
Sítio Oficial: https://www.facebook.com/EpouseMoiMonPote/

19 de agosto de 2018

"Darkest Hour" por Nuno Reis

Darkest Hour
Vivemos numa época em que é fundamental recordar o que foi a Segunda Guerra Mundial, mas a indústria do cinema, em vez de se focar em algo importante, por exemplo, explicar como ditadores chegam ao poder manipulando as massas, prefere mostrar o herói que enfrenta e derrota qualquer vilão.
Quem é o grande herói europeu desse confronto? No espaço de sensivelmente um ano tivemos "Dunkirk" sobre como os civis são tão fundamentais para o exército. Tivemos Their Finest sobre como o marketing define o rumo das batalhas. Tivemos "Darkest Hour" sobre como são precisos líderes que acreditem quando mais ninguém acredita. Tivemos "A United Kingdom" com referencias ao governo seguinte de Hitchcock e como desiludiu em tempos de paz. Tivemos "Hitchcock" sobre a queda do ídolo. Durante anos não se viu nada e de repente é uma necessidade falar dessa época quase totalmente centrada num indivíduo. Hitchcock. Hitchcock. Hitchcock. E é neste filme que mais se vê a força do líder.
Não é dado contexto à guerra. É impossível não saberem o que se estava a passar. O destaque que é dado é à relação entre monarca e primeiro-ministro, entre primeiro-ministro e governo e entre primeiro-ministro e povo. Comecemos por George VI. Tal como George V, não era suposto ter governado pois era apenas o segundo irmão. O quinto liderou nos anos da Grande Guerra e governou nos anos em que comunismo e fascismo assolaram a Europa. Foi também aquele que criou a Commonwealth que salvou o Império do colapso e conservou o Reino Unido uma potência até aos nossos dias. O sexto teve de enfrentar uma provação em nada inferior. Ainda não governava há três anos e teve de declarar novamente guerra à Alemanha. Só que desta vez França não ia poder ajudar. As Ilhas Britânicas tinham de resistir quase sozinhas contra o Eixo. Passemos então ao governo. O governo caiu. Não há como evitar quando é dada uma missão impossível. Desde Napoleão que não enfrentava tal ameaça. Nessa altura tinham uma coligação maioritária que incluía a potência Prússia e venceram por uma questão de minutos. Agora, a rendição parecia a única opção. Churchill por vezes sentia-se só na decisão de lutar contra tudo e todos. E é aí que entra o povo. Alheios ao que se passava nos campos de batalha. Sem saber o que se passava em Dunquerque. A ouvir os bombardeamentos dia e noite e a perderem casas e pessoas constantemente, viraram-se para o seu líder. Ele foi a sua força e eles foram a dele.
O filme faz um bom balanço do que se passava nessa cabeça. Mostra que apesar de ser um militar e estratega, era acima de tudo humano. Tinha sentido de humor para conviver quando lhe convinha e uma energia que lhe permitia enfrentar tudo e todos. Numa hora negra – efectivamente a mais negra das horas – não só aguentou quando todos desistiram, como usou as palavras para ressuscitar uma esperança há muito perdida. Não era uma pessoa de trato fácil, nem estava livre de críticas, mas fez aquilo que lhe foi pedido quando parecia impossível.
"Darkest Hour" é uma evolução de Joe Wright. Depois de "Atonement" já o sabíamos muito capaz de criar batalhas épicas e atmosferas pesadas. Uma década depois a narrativa visual dá lugar a um jogo mais complexo. Conta várias histórias paralelas centrada numa única pessoa. Equilibra o ter toda a informação por se estar no governo e o desconhecimento de não estar onde as coisas acontecem. Vai dando pistas de tudo o que podia ter corrido mal por causa de indivíduos menos corajosos. E usa o humor para não nos deixar cair no abismo do desespero. Fazer um filme histórico sobre algo tão bem explorado traz dificuldades. "Darkest Hour" terá sempre os spoilers da História. Dentro das suas possibilidades, saiu o melhor que podia. É um filme negro como a época que vivemos, mas é optimista como uma Caixa de Pandora. Se deixarmos passar tudo o que está errado, se aguentarmos o sofrimento, no fim ficará uma luz que nos guiará para uma sociedade melhor. Citando Gary Oldman de outro filme, não é um filme como queríamos, mas é o filme que precisávamos.


Darkest HourTítulo Original: "Darkest Hour" (Reino Unido, EUA, 2017)
Realização: Joe Wright
Argumento: Anthony McCarten
Intérpretes: Gary Oldman, Kristin Scott Thomas, Lily James, Ben Mendelsohn, Ronald Pickup, Stephen Dillane, Nicholas Jones, Samuel West
Música: Dario Marianelli
Fotografia: Bruno Delbonnel
Género: Drama, Guerra, História
Duração: 125 min.
Sítio Oficial: http://www.focusfeatures.com/darkesthour/

18 de agosto de 2018

"Tag" por Nuno Reis

tag
Quase toda a gente recordará com carinho os anos de infância e as brincadeiras feitas com os amigos. Os anos dourados onde corridas, gritos e risos significavam felicidade. Algo tão simples como o jogo da apanhada. Quando se chega aos dois dígitos de súbito surge uma irracional vontade de crescer. Para uma década depois se voltar a desejar ser uma criança. Um grupo de amigos não se conformou e decidiu ser criança da única forma que fazia sentido: jogando à apanhada toda a vida adulta. O Wall Street Journal apanhou essa curiosidade e fez um artigo sobre um grupo que anualmente faz um mês da apanhada com algumas regras, mas sem limites geográficos. Não demorou muito até ser tornado numa obra de ficção baseada em factos reais.
A receita deste filme quase se fez sozinha, mas vamos ver por partes. Começa-se com nomes habituais da comédia. Ed Helms, Jake Johnson, Isla Ficher, Leslie Bibb, Rachida Jones. Juntam-se alguns nomes sonantes como Jon Hamm e Jeremy Renner. Para fechar, vamos acrescentar o amigo negro (Hannibal Buress) que todos os filmes precisam e uma jeitosa (Annabelle Wallis) externa ao grupo para que lhe possam explicar aquilo que o espectador tem de ouvir. Para o argumento nada como começar com a realidade. Um executivo de uma empresa estava a dar a sua entrevista ao WSJ quando o novo funcionário da empresa o ataca. Não um daqueles ataques com facas ou ácido que se vêem nas notícias. Um mero toque com a mão, mas do qual Callahan fugia como se disse dependesse a sua vida. Crosby, a jornalista, fica curiosa com o motivo desse momento louco e pergunta o que se passa. “É o jogo da apanhada. Jogamo-lo há 30 anos todos os meses de Maio.” Não era a resposta que esperava ouvir, mas o seu faro diz-lhe para seguir a história. Vai descobrir um inusitado grupo de homens que leva a sério o seu jogo. Ninguém quer ficar 11 meses com a vergonha. E por isso percorrem o mundo, planeiam e disfarçam-se como autênticos agentes secretos. Não podem falhar o alvo. E ainda que sejam todos muito dedicados, ninguém se compara a Jerry. Em trinta anos ninguém o apanhou. Além de ter imensa agilidade e uma rota de fuga sempre preparada, é como se antecipasse os seus movimentos. Este é o último ano de Jerry e todos se unem para o apanhar.
O filme começa como tantas daquelas comédias modernas. É louco sem ser estúpido e tem um bom desenrolar da história. As personagens vão entrando em cena aos poucos e o contexto propicia oportunidades para nos explicarem o passado de forma a fazer sentido. Quando chegamos a Jerry e os seus super-poderes (ironicamente interpretado por Jeremy Renner, o Avenger e Bourne com menos capacidades) parece desconcertante, mas já foi dado o mote de plausabilidade. As personagens acessórias, lideradas pela cada vez mais surpreendente Isla Fisher, são um bom complemento e a história vai tendo lugar de forma fluida. O prazo aproxima-se do fim e o seu objectivo que parece tão próximo vai ficando mais longe. A comédia funciona e os toques de romance também. O jornalismo tem só uns momentos mínimos para equilibrar, mas sem destoar. No fundo é um filme sobre sem adulto e sobre ser criança. Duas coisas que não são incompatíveis ao contrário do que nos levam a crer ao longo da adolescência. Sobre ter os amigos por perto para dar um pouco de loucura aos nossos dias cinzentos. É sobre quebrar as regras da sociedade (e uma janela ocasional). É sobre sentirmo-nos vivos. Mesmo que sejamos crescidos. Mesmo que a morte esteja eminente.

TagTítulo Original: "Tag" (EUA, 2018)
Realização: Jeff Tomsic
Argumento: Rob McKittrick e Mark Steilen (baseados no artigo de Russell Adams)
Intérpretes: Ed Helms, Jon Hamm, Annabelle Wallis, Jake Johnson, Isla Fisher, Hannibal Buress, Steve Berg, Jeremy Renner, Leslie Bibb, Rashida Jones
Música: Germaine Franco
Fotografia: Larry Blanford
Género: Comédia
Duração: 100 min.
Sítio Oficial: https://www.facebook.com/tagthemovie

9 de agosto de 2018

"Overboard" por Nuno Reis

Overboard
Kate Sullivan (Anna Faris) é empregada doméstica, entregadora de pizzas e estudante de enfermagem. Não é fácil gerir o estudo com dois empregos e três filhas, pelo que um cliente extremamente rico parece uma excelente forma de fazer dinheiro. O problema é que o cliente (Eugenio Derbez) é um homem mimado, atraente, egocêntrico e sem qualquer respeito pelas pessoas. Dá mais despesas a Kate do que lucro. Quando o destino proporciona uma vingança atirando o milionário borda fora, a amiga (Eva Longoria) sugere uma forma de ficar com mais tempo livre. Kate não hesita, só que acaba por gostar mais da situação do que quer admitir.
Overboard
Para toda uma geração Anna Faris será sempre a rapariga dos "Scary Movie""'s, mas a sua carreira é bem mais do que isso. Neste momento tem meia centena de títulos no currículo e se é conhecida por comédias como "The Hot Chick", "The House Bunny" e "The Dictator", também entrou em pérolas inesperadas como "Brokeback Mountain" e "Lost in Translation". Mais recentemente encontrou uma casa na CBS protagonizando a série "Mom onde Allison Janney a ofusca. Nessa série interpreta uma mãe solteira que, tal como a mãe e amigas, é alcoólica em recuperação. Neste filme vamos reencontrar algumas das temáticas como a maternidade e o alcoolismo. Faris continua exactamente nesse registo tão familiar a que nos acostumou em seis temporadas.
Overboard
A comédia está co-protagonizada por Faris e Derbez. Dividir os créditos na comédia não é habitual para a actriz, mas este filme não é a convencional comédia americana. Tem uma forte influência mexicana como os dois actores referidos e o facto de ter diálogos bilingues alternados de forma natural. E por vezes parece uma novela mexicana. Porque o realizador Rob Greenberg tem um passado exclusivo na televisão (nos EUA) e não quis fugir muito ao formato onde se sente confortável. Porque Faris está a repetir a sua grande personagem televisiva (a personalidade é demasiado semelhante para as distinguir). Porque ver Longoria nos leva sempre de volta para os tempos em que "Desperate Housewives" era a série mais popular. Porque Derbez ainda não se afirmou como rosto de cinema. Porque o argumento não arrisca. É estranho ver Overboard" como cinema. Sim, em 1987 esta mesma receita funcionou quando Kurt Russell enganou Goldie Hawn, mas os argumentos podiam ter evoluído. Foi feita a convencional troca de género aos protagonistas, mas não mudou em nada de especial. Um tele-filme teria a mesma ousadia.
Overboard
É um filme para ver num dia quente de Verão, enquanto se desfruta do ar condicionado da sala, e esquecer no dia seguinte.
OverboardTítulo Original: "Overboard" (EUA, 2018)
Realização: Rob Greenberg
Argumento: Bob Fisher, Rob Greenberg, Leslie Dixon
Intérpretes: Eugenio Derbez, Anna Faris, Eva Longoria, John Hannah, Swoosie Kurtz, Mel Rodriguez
Música: Lyle Workman
Fotografia: Michael Barrett
Género: Comédia, Romance
Duração: 112 min.
Sítio Oficial: https://www.overboard.movie

8 de agosto de 2018

"Columbus" por Nuno Reis

Columbus
Aqui está a linha entre o cinema de autor e o cinema para as massas. O formato longa e as estreias comerciais não são abonatórias para este cinema que se costuma esconder nos festivais e em ciclos direccionados a nichos específicos. Um filme com John Cho, estrela de blockbusters na comédia e ficção-científica, e Haley Lu Richardson, que esteve em "Split" e "Edge of Seventeen", pode parecer de grande público, mas os actores, como quaisquer artistas, por vezes surpreendem.nos com algo fora do convencional. Um projecto artístico que não visa o lucro.
Columbus
Kogonada lançou-se no cinema estudando os mestres. Ao fim de alguns documentários/ensaios fez uma longa-metragem. O tema foi a arquitectura e para isso dirigiu-se a Columbus, Indiana. Para nós, europeus, uma localidade americana no meio do nada com menos de 50000 habitantes não terá interesse, mas para os amantes dessa arte é um destino ímpar. Essa terra aparentemente desinteressante é onde se podem encontrar vários dos marcos históricos nacionais (EUA) da arquitectura moderna, incluindo criações de ambos os Saarinen e a Miller House. A arquitectura é o principal motivo de excursão a esta cidade e o cerne da existência dos protagonistas.
Columbus
A jovem Casey sempre viveu na cidade e apaixonou-se pelos seus edifícios. No entanto devido ao estado mental da mãe, não considera seguir as pisadas dos colegas e sair para estudar a fundo. Jin é já um homem feito e não gosta de arquitectura, mas o pai é uma autoridade no tema e ao ser internado quando se preparava para uma palestra em Columbus, obriga-o a ir para lá. Cruzam-se por acaso e Casey vai aproveitar o tempo livre para mostrar a Jin os seus monumentos favoritos. Ela como quem se despede, ele como um turista que ignora o deslumbramento colectivo por aquilo. Enquanto ela lhe abre os olhos para a beleza dos edifícios que os rodeiam, ele fá-la repensar na vida e no futuro.
Columbus
"Columbus" foi escrito, realizado e editado por Kogonada. É uma obra simples e com orçamento reduzido que se foca na componente visual. Mais próximo do ensaio fotográfico do que filme a que estamos acostumados, será um longo momento de tédio para quem está acostumado ao cinema espectáculo. O propósito deste filme é mostrar edifícios e fazer reflectir sobre o que é a beleza, qual a utilidade de um edifício belo, e o significado da vida. Casey tem a vida pela frente, mas não a quer aproveitar. Jin desperdiçou a vida ignorando a beleza. Estas duas personalidades tão contrárias são o fundamental do filme e tudo o mais é um mero acessório para lhes dar um passado e alguma profundidade como seres humanos. O que podia ter sido contado num filme de vinte a trinta minutos que ilustrasse um passeio pela cidade, foi artificialmente transformado num drama de vida espaçado por vários dias. Sim, a mensagem passa, mas é preciso ir a contar com o que se vai ver.
Columbus
A semelhança com o formato documental faz com que Kogonada esteja muito confortável nesta estreia na ficção. O realismo do drama social e familiar é intenso. Graças às performances excelentes de Richardson, Cho, Rory Culkin e Parker Posey. Visualmente cumpre o que se esperaria: mostra edifícios de culto pelos olhos das pessoas normais, que pensam na sua utilidade e reparam nas rachas em vez de visualizarem se é belo e enquadrado no meio envolvente. É um desafio visual interessante que terá como destinatários os amantes da arquitectura e da fotografia. Algumas das suas imagens ficarão gravadas na memória, mas não conseguirá convencer os restantes a novo visionamento.


ColumbusTítulo Original: "Columbus" (EUA, 2017)
Realização: Kogonada
Argumento: Kogonada
Intérpretes: Haley Lu Richardson, John Cho, Parker Posey, Rory Culkin, Michelle Forbes
Música: Hammock
Fotografia: Elisha Christian
Género: Drama
Duração: 100 min.
Sítio Oficial: https://www.columbusthemovie.com/

30 de julho de 2018

"King of the Belgians" por Nuno Reis

Ao longo das suas mais de vinte edições, Avanca tem sido um festival fora do comum. As pessoas que lá se reúnem podem não ser as mais famosas, mas são, sem excepção, boas pessoas e amam a arte. Aliás, como é um festival para todos os formatos (tem cinema, televisão, vídeo, curtas, longas, animação, documentário, ficção, experimental, conferência académica) tem pessoas que não se encontram noutros festivais. Todas vão a festivais, mas não se cruzam todas em mais nenhum lugar do mundo. Por isso a selecção é sempre diversa e pouco convencional – muitos dos títulos não voltam a ser exibidos em festivais nacionais – mas há sempre grandes pérolas pelo meio. Este ano sem grande surpresa o vencedor foi "King of the Belgians", dos repetentes Peter Brosens e Jessica Woodworth que competiram pela terceira vez no certame Desta vez com uma história tão mirabolante que é credível e tão simples que é fascinante.
O argumento acompanha Duncan Lloyd, um documentarista contratado para fazer um filme sobre o rei Nicholas da Bélgica. Tem permissão para gravar tudo de forma a editar uma peça que evidencie o maravilhoso rei que os Belgas têm a governá-los. No decorrer desse projecto, vai com o monarca para Istanbul onde participará numa cerimónia que demonstre o apoio da Bélgica à adesão turca à a´União Europeia. Só que acontece uma situação delicada no seu país e, como quase simultaneamente houve um problema nas radiações cósmicas, não tem forma de comunicar. O Rei tem de voltar urgentemente a Bruxelas o que a Turquia vê como uma ameaça à integração europeia. Protocolo, patriotismo e desejo de gravar algo extraordinário colidem e não há tempo a perder.
O filme vinha classificado como comédia o que é sempre um pouco suspeito. Esta dupla tem feito documentários e vários filmes sérios. Por isso a mudança brusca de género foi ainda mais surpreendente. Os vários anos de Brosens como documentarista permitem-lhe brincar com o género à vontade. Esta dupla só teve de adicionar algum do peculiar humor belga e retratar as estranhas peripécias que alguém muito azarado teria de enfrentar ao atravessar países menos desenvolvidos do que a capital da Europa. Vai conhecer o melhor da humanidade. Vai perceber o que realmente importa na vida. Vai ser uma pessoa melhor e libertar o governante melhor que todos sabiam que ele podia ser.
A equipa artística é simplesmente perfeita. Estão todos adequados ao papel nos momentos formais e depois são humanos interessantes de conhecer como Lloyd vai provar nas perguntas pertinentes que vai fazendo casualmente. Não era pedido que fossem perfeitos, era pedido que fossem humanos e conseguiram. De uma perspectiva técnica não havia muito a mudar. A câmara nem sempre está num ângulo plausível, mas faz parte das artimanhas do realizador para gravar quem não sabe que está a ser filmado. O argumento é delicioso e tem uma construção meticulosa que os vai despojando de bens materiais enquanto os enriquece de experiências de valor imenso.
Com uma dose de humor inesperada e uma sagacidade extrema sobre os problemas que assolam a Europa do século XXI, “The King of Belgians” foi o claro vencedor em todas as competições de Avanca onde participava. Saber que vem aí uma nova aventura – uma sequela – dá uma enorme vontade de aplaudir. Depois do Rei dos belgas, pode ser Imperador dos europeus, Líder da Humanidade, ou Governante do Universo só para sugerir algumas possibilidades de prosseguir com a história. É um feel good movie feito com mestria, humor e arte. Que mais se podia pedir?



King of the BelgiansTítulo Original: "King of the Belgians" (Bélgica, Bulgária, Países Baixos, 2016)
Realização: Peter Brosens, Jessica Woodworth
Argumento: Peter Brosens, Jessica Woodworth
Intérpretes: Peter Van den Begin, Lucie Debay, Titus De Voogdt, Bruno Georis, Goran Radakovic, Pieter van der Houwen
Fotografia: Ton Peters
Género: Comédia, Drama
Duração: 94 min.
Sítio Oficial: http://kingof.be/